26.2.07

Medeiazonamorta


Fui convidado para participar de uma roda de conversa com público e artistas do espetáculo Medeiazonamorta, uma produção do Grupo Teatro Invertido, que faz parte do Circuito Off. O espetáculo ocupa um laboratório desativado da Escola de Engenharia da UFMG.

Conversamos sobre alguns planos, relativos à configuração do pensamento teatral que o grupo coloca em cena. O coletivo de artistas intitula as apresentações de Temporada Laboratório e, segundo Leonardo Lessa, ator e um dos fundadores do Grupo, o espetáculo é uma obra em processo. Em cada espaço, o espetáculo se desfaz e se refaz. Batemos uma bola, com alguns toques e lances do tipo:

1. A definição de uma obra em processo. O que difere de uma concepção de arte como obra acabada, mesmo que aberta (ecos de Eco...) etc. No procedimento da obra em processo, não há a manutenção de um espetáculo que deve corresponder sempre ao seu projeto inicial. O não-acabamento (que não quer dizer mal acabamento) é o que define a obra.

2. O plano de composição cênico: conversamos sobre teatros épico-dramáticos e teatros pós-dramáticos. Me vem à cabeça que o Teatro Invertido, parte para um teatro pós-dramático, seguindo a análise de Lehmann. Num teatro dramático (e épico) há três fatores que não arredam o pé (ou desconfigurariam a forma clássica): a) o vínculo entre personagem e lugar; b) o texto vem da boca da personagem e está à serviço de sua construção (social e/ou psicológica), ou, ainda, funciona como descrição da ação, como no épico; d) há um vínculo interno entre a forma teatral e a forma dramática (desenvolvimento da continuidade das ações por coerência lógica e conflito). A forma épica não deixa de ser um teatro dramático. Entretanto, nada disso, pelo que vi, encontra-se em Mediazonamorta. Diferentemente de outras produções do grupo, esta aponta para outro tipo de configuração mental do teatro. O coletivo de artistas adentrou em outra zona de criação cênica. Antes de qualquer coisa, é preciso dizer que não há julgamentos aqui: a forma dramática não é melhor ou pior que a forma não-dramática de teatro. Apenas cumprem planos de poesia diversos.

3. O plano de caos que a encenação cria. Ele possui potências corrosivas.
4. O plano das justaposições e das conexões não causais entre as cenas. Nesse aspecto encontra-se, na minha visão do espetáculo, as suas potências criativas.
5. O plano corpóreo e a visceralidade das ações.

Falei desses planos e de suas relações com o texto falado pelos atores. E da força poética de certas imagens que a encenação proporciona.

Há mais ou menos dois anos, um curador de um festival de arte e cultura de Barcelona (Espanha) fez uma visita ao Centro de Cultura Belo Horizonte, no qual eu estava à frente com uma bela equipe de trabalho. E o que ele me disse? Que Belo Horizonte era uma cidade na qual predominavam as comédias teatrais. Contestei isso. Nada contra as comédias, mas não corresponde à realidade de criação cênica da cidade. Então, ele me desafiou: - Vamos abrir um jornal! E completou: - Onde estão os grupos e as criações de que você me fala?

Foi um aperto, confesso. O momento em foco não estava nada bom, pelo menos na mídia impressa. Assistindo Medeiazonamorta, que se propõe a um espetáculo visceral, virulento e de uma poética que passa pelos planos da materialidade cênica, vejo que Belo Horizonte não é uma conformidade com a mesmice. O mesmo posso ver nos esforços dos artistas que estão criando, ao lado do Circuito Off, o quase-festival Verão Arte Contemporânea.

Ei, se liguem. Há vida inteligente em Belo Horizonte. Há artistas correndo riscos, saindo dos lugares comuns, realizando produções independentes, experimentando.

Bibliografia:
LEHMANN, Hans-Thies. Postdramatic Theatre. New York: Routledge, 2005.
COHEN, Renato. Working in progress na cena contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 1998.
Ficha Técnica: Medeiazonamorta: atuação de Camilo Lélis, Leonardo Lessa e Rita Maia; direção de Amaury Borges; texto de Letícia Andrade; Cenografia de Ines Linke; tilha sonora de Admar Fernandes e iluminação de Rogério Araújo e Amaury Borges. Veja mais em: www.circuitooff.com.br

18.2.07

Experimentação abre o Verão Arte Contemporânea

Caminho, em foto de Glenio Campregher


Verão Arte Contemporânea, projeto que reune a máquina de guerra de poéticas cênicas, visuais, corporais, literárias e outras, atracou estreando no Teatro Francisco Nunes, em Belo Horizonte, dois eventos singulares: Caminho e Salão QuasiArte, com destaque para a Cabana de Rubens Espírito Santo.

Caminho é uma criação do poeta e performer Ricardo Aleixo com o bailarino Rui Moreira, tendo ainda a participação do song designer Murilo Corrêa e dos dançarinos Rato e Leo Bboy. O espetáculo explora relações não hierárquicas entre som, palavra, imagem e corpo. Nada sobra nesse espetáculo - não há excedente de idéias, pensamentos ou criação. Há um fio correndo luminoso e afiado. Há momentos preciosos, nos quais linhas simultâneas são exploradas. As ações poéticas são minimalistas e sensoriais. A materialidade cênica é o próprio discurso, tendo a poesia verbovisual, como diz o próprio Ricardo Aleixo, como caminho que segue no paralelismo com o corpo.


Rubens Espírito Santo na Cabana, em foto de Glenio Campregher

No Salão QuasiArte, no foyer do Teatro Francisco Nunes, são expostos objetos que, como o nome diz, podem ser quase arte. Estão na fronteira. O público, no caso, é quem decide. Chamo a atenção para a Cabana de Rubens Espírito Santo, que veio de São Paulo para expor no Verão Arte Contemporânea a convite de Ione Medeiros, do Grupo Oficcina Multimédia.

Rubens criou uma instalação que é uma cabana, como ele chama. Preferiria dizer que se trata de um barraco em órbita. É uma arte que você pode usar. Isso pode ser difícil de conceber quando a arte tomou em alguns trezentos anos de História no Ocidente o caráter contemplativo. Ou porque algumas obras desse tipo tornam-se impossíveis de serem comercializadas no mercado convencional de arte, a que servem muitos críticos, diga-se somente para lembrar.

Na entrada, uma campainha com o aviso: Aperte e Theodor Adorno irá atender. No entanto, as referências que se encontram na cabana, ou no barraco orbital, não pertencem a uma identidade. Nem são somente eruditas e nem se restringem a um universo que circunscreveria um personagem social - como um mendigo, por exemplo. São emaranhados e pontas soltas que podem te levar para conexões não previstas, quer dizer, não-causais.

Na abertura do evento, um casal dançava juntinho num canto da cabana, que tem toca-dicos (vinil) e uma tv com imagens, enquanto outras pessoas vasculhavam suas paredes, sentavam-se, escreviam ou apenas olhavam. É uma arte psicótica, como lembrou uma atriz, ali presente. Abre conexões divergentes e que não estabelecem elos de significação. Não há metáforas, mas objetos encontrados num percurso. Fotos, citações, escritos, objetos diversos, tudo isso povoa um mundo. É também uma estética da probreza, que se contrapõe ao mundo fashion e frívolo de grande parte das produções em artes plásticas.

O evento continua com outras apresentações, nos Teatros da Fundação Municipal de Cultura, Francisco Nunes e Marília, tendo co-realização da Oficina Multimédia e da Prefeitura de Belo Horizonte. A idealização do Verão Arte é de Ione de Medeiros (Grupo Oficcina Multimédia), Keyla Monadjemi (Meia Ponta Cia. de Dança) e Rui Moreira

É um projeto de puro risco. Um grupo de artistas, sem recursos de Leis de Incentivo, procuraram a Fundação Municipal de Cultura, no final de 2006, para viabilizar o projeto. Foram garantidos os Teatros, as equipes cenotécnicas e apoio em divulgação. Cada artista, grupo ou coletivo de criação assume sua própria produção.

Abrir espaços para a arte contemporânea exige coragem,principalmente quando o mercado cultural tem a forte tendência ao mediano, ao comunicável, ao vendável. E a adesão das pessoas mostra que as políticas públicas podem abarcar a diferença e a singularidade, nem sempre tendo que esperar as grandes verbas. O que não quer dizer que os artistas abrem mão de melhores condições, mas apenas que, nesse momento, apostam no risco de abrir uma fenda na paisagem belohorizontina.

Como diretor dos Teatros da Fundação Municipal de Cultura, chamo a atenção para as potências do projeto Verão Arte Contemporãnea:

1. O projeto é afirmativo e procura a expansão de suas potências. Não é um encontro de lamurientos, mas de pessoas que resolveram modificar a paisagem do verão em Belo Horizonte;

2. Não pertece a nenhuma corporação artística. Não há um dentro e um fora nesse sentido. É um movimento. Acontece.

3. Define arte contemporânea pelo desejo de artistas atravessarem o seu próprio tempo. Não tentando retratá-lo ou se colocando como representantes de uma possível contemporaneidade. Não representam, as próprias coisas (e pessoas) estão ali: expondo suas criações. Contemporâneo não como uma categoria de qualquer pós-isso, ou pós-aquilo, mas como pensamento de um espírito de época, com suas ironias, com suas incertezas e potencial afirmativo.

Os Teatros Municipais cumprem, assim, uma de suas funções (além daquelas convencionais), que é, nas palavras do próprio Rubens Espírito Santo, numa entrevista à imprensa, a de perverter o sentido (prévio) do uso de seus espaços.
Mais informações sobre o Verão Arte Conteporânea em http://www.oficcinamultimedia.com.br/veraoartecontemporanea.htm

12.2.07

Assimetria

Andando a esmo por textos esparsos encontrei um pensamento, incompleto mas provocador, a respeito da improvisação.

Trata-se da idéia de assimetria, que surgiu no contexto de um exercício de improvisação teatral. Portanto, estou referindo a um contexto específico, de exercício-jogo para o teatro. No caso, dois performers físico-experimentais (cujo discurso cênico é a própria materialidade cênica), dividiriam, como ponto de partida, o espaço cênico em duas partes. Trata-se de um exercício compositivo em que cada um procura dialogar fisicamente (através do corpo, tempo e espaço) com o outro. Surgiu, nesse exercício, o pensamento sobre a seguinte questão: simetria e assimetria.

A questão passa a ser esta: o exercício se dá em bases simétricas ou assimétricas? Obviamente, aventa-se o exercício da assimetria.

A simetria é uma busca da segurança, da afirmação equilibrada segundo a justa distribuição, idealmente concebida como o meio dividido em duas (ou mais) partes iguais, com pesos respectivos e correspondentes. Pensamento clássico em termos de criação.

O simétrico possibilita uma comunicação em termos da ação: ao fazer o que ele faz em meu campo, busco uma sintonia, a afinação para estabelecer as bases sensoriais/perceptíveis do diálogo.

Comentário: Atuar em uníssono provoca uma sinergia, um contato. Não seria essa uma modalidade de simetria? Entendo que, se a improvisação é simétrica, nada mais acontece. Na composição, a simetria é uma ordem racional. Ela diminui o campo de percepção (dos performers entre si e do público também), pois é totalmente previsível. A assimetria, ao contrário, provoca novas percepções.

Da assimetria surge outro plano: não mais o equilíbrio da totalidade dividida em partes iguais - um tipo de concepção de justiça - mas a diferença ao lado, reivindicando com base na serialiedade das correspondências, em vários tipos de montagens disponíveis. Séries desviantes.

Uma justiça em desequilíbrios constantes, cuja estrutura é vazia, onde o campo sempre se modifica.

Mas uma justiça de outra ordem: ora clama uma dor singular, ora uma oposição polarizada, uma ausência ou uma fala que não se diz, ou outras vias de negação, para afirmar de todo jeito o primado da diferença sobre a identidade.

A assimetria não será a simetria em níveis mais profundos, como o quer (secretamente) a dialética, passando pela afirmação, negação e superação das oposições, subsumidas a um ordem superior. O contrário disso: o que se faz assimétrico não busca leis de negação e identidade. É diverso.

Trata-se de uma justiça que incorpora a tortuosidade dos acasos, sem progresso acumulativo, ascencional.

O exercício improvisacional dos dois performers (ou mais, se quiserem): uso do uníssono como possibilidade de conexão, de impressão sensorial, mas produzindo séries assimétricas, divergentes e desviantes.

10.2.07

Um corpo (que) não representa

A associação entre teatro e representação é uma relação de conjugues. Dissociar essa correspondência tem sido uma tarefa a que venho me dedicando.

Passei a invocar a potência de um corpo que não representa. Uma abertura proporcionada por experimentos cênico-corporais (teatros físicos, pós-dramáticos, dança contemporânea) e pela performance art, incluindo o campo da body art.

Algumas características da representação:

1. Opera com o binarismo forma e matéria, significante e significado. Há sempre algo que remete a algo. A coisa como tal, como se apresenta, não conta. Ela é um suporte para uma significação. Um corpo nunca é um corpo: ele deve representar alguém ou algo.

2. Tem na cena ilusionista sua expressão maior. O teatro do século 18, com a definição da quarta parede, onde os atores estão em outro plano, que não o dos espectadores, é seu rastro mais evidente. Ismail Xavier, analisando o olhar e a cena, cita Roland Barthes, para quem o teatro é o “lugar calculado”, a partir do qual as coisas podem ser observadas.

Cria-se, portanto, um sujeito que mira numa direção (a perspectiva resulta desse lugar preciso), cortando uma superfície, formando um cone do qual o seu olhar é o vértice. Esse sujeito, localizado e pontual, pode representar o mundo por esse teatro, no qual o observador encontra-se separado do observado, mantidos os seus limites. ´

3. A representação tem por corolário a interiorização. Trata-se do mito do fantasma na máquina (uma mente que habita num corpo), criado por Descartes e que foi desmontado pelo fiósofo analítico Gilbert Ryle. Seu livro, The Concept of mind, é hoje um clássico dessa desmontagem da noção de mente como interiorização.

Dito tudo isso, o que acontece quando um corpo deixa de representar?

Adentramos num deserto onde somenta conta a sensibiidade, para pensar com Melevich, no seu Manifesto Suprematista:

"A escalada ao cume da arte não-figurativa é difícil e atormentada..., mas ainda assim satisfatória. As coisas habituais vão recuando pouco a pouco, a cada passo que se dá os objetos afundam um pouco mais na distância, até que, finalmente, o mundo das noções habituais - tudo o que amamos e a que ligamos nossa vida - se apaga completamente.Basta de imagens da realidade, basta de representações ideais - nada mais que o deserto!"

Se o objeto (corpo) deixa de representar, isto não significa uma volta ao binarismo, ou à sua exclusão da arte. Pelo contrário, o objeto volta com os ready made de Duchamp. O encenador polonês, Tadeusz Kantor, que correspondia com Duchamp, foi um dos que inventou um novo plano cênico no qual essa oposição já não mais conta: a volta do objeto pobre.

A minha primeira rebelião em relação à representação deu-se no exercício de Arte-Educação, observando o brincar da criança pequena. Um menino que "monta" num cabo de vassoura não está, ao contrário do que acreditam cognitivistas, gente de teatro e educadores, representando um cavalo. Ele vive a experiência corporal de ser conduzido por um objeto: são as sensações que conta, no caso.

E o "cavalo"? Por que, então, o menino brincaria de "montar cavalo" com um cabo de vassoura? Deleuze, em Crítica e Clínica, abre um plano diverso do plano das representações, no qua se faz possível ver o movimento do menino como mapa, como cartografia intensiva: "os dois mapas, dos trajetos e dos afectos, remetem um ao outro." Ou seja, o "cavalo" é um mapa do trajeto movimento-cabo de vassoura (ou bastão).

Isso mudou minha visão em Arte-Educação. Rompi com os programas de jogos teatrais. Comecei a ver o mundo com outros olhos. Deu-se a emergência de corporeidades que fizeram fugir a representação.

Para dar um só exemplo, passei a pedir aos atores, nos exercícios de improvisação (que chamo de física e experimental): aí está uma cadeira, trabalhe com ela sem representar.

Uma arte que começa por aí.


Bibliografia:

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997.
RYLE, Gilbert. The concept of mind. Chicago University Press, 1984.
XAVIER, Ismail – O olhar e a cena. São Paulo: Cosac & Naif, 2003
Confira também trechos do Manifesto Suprematista, de Malevich, no bloco de notas do site de Dudude Herrmann: http://www.dududeherrmann.art.br/

3.2.07

Definição de arte







“Arte é o que faz a vida ser mais interessante que a arte”

Robert Filliou


http://arts.fluctuat.net/robert-filliou.html

31.1.07

Verão Arte Contemporânea



Sinopse do Evento:


"Compreendendo o nosso tempo através de um recorte cultural reunindo projetos atuais, respeitando as diversidades expressivas e abrindo espaço para formatos novos da criação artística, nosso objetivo é atender à demanda e à diversidade da produção expressiva artística da cidade de Belo Horizonte envolvendo as demais áreas da reflexão e da criação artística tais como: Teatro,Dança, Musica e Artes Visuais.


Nesta primeira edição, estaremos focando a quebra de fronteiras não só entre as linguagens artísticas como também nas associações com propostas de reflexão política, no investimento na busca de raízes, e na liberdade do exercício de uma linguagem estética comprometida com os tempos atuais.


Acreditamos que esta ação de Verão possa otimizar um espaço e um tempo voltado para as férias, resgatando culturalmente a própria função da arte na comunidade. Elegemos os teatros públicos Francisco Nunes e Marília para a realização deste evento em Belo Horizonte e como parceiros, teremos os espaços Z.A.P 18 (Zona de Arte da Periferia), a Marcenaria e a Fundação de Educação Artística (Manhãs Musicais). A proposta pretende ocupar também o foyer dos teatros Francisco Nunes (Café e exposição Quasiarte) e Marília (Bar) com o objetivo de promover um encontro produtivo entre público e artistas criadores.


Além de Belo Horizonte a cidade de Ouro Branco estará recebendo espetáculos do Verão Arte Contemporânea como uma primeira extensão deste projeto. Vá, veja e confira o que Belo Horizonte está produzindo artisticamente e como vem refletindo seu compromisso com a sua própria inquietação artística e com a complexidade dos dias atuais!"


Por: Equipe do Projeto



29.1.07

Improvisação e experimentação - De Cage a Kandinsky

Tenho reivindicado uma pesquisa em criação cênica na qual a improvisação entra numa zona de indiscernibilidade com a experimentação.

O que muda?

Como experimentação, a improvisação deixa de ser apenas uma ferramenta para a busca de materiais novos para a criação cênica. Nâopassa também a ser um espetáculo/performance na qual os atuantes criam/improvisam diante do público, com ênfase nas decisões tomadas. Katie Duck, performer de dança improvisacional, radicada na Holanda, aponta para esse caminho ao dizer que lhe interessa não uma estética de decisões mas sim de acasos, tomando por base as operações de acaso de John Cage.

A improvisação experimental expôe, portanto, os acasos que emergem num campo de percepção compartilhado entre público e performers.

Trata-se antes da fabricação de uma zona de indeternimação na criação cênica (emergência de acasos no campo de percepção da cena), mais do que de improvisação pura (exposição das decisões dos performers diante dos problemas colocados), que podem ser trabalhadas com ações previamente definidas e outras que não o sejam. A artista e pesquisadora cênica, Sara Rojo (UFMG), no debate de minha dissertação de mestrado sobre o tema, nomeou essa possibilidade improvisacional como sendo um lugar em que ocorrem ações pautadas e não pautadas.

No entanto, apenas ressalto que, numa visada experimental as ações pautadas nunca poderiam ser totalmente pautadas, pois, na esteira de John Cage diria, o lugar da performance não é determinado. Ou seja, ocorrerão coisas que serão, num nível macro ou num nível micro, impossiveis de serem previstas. Assim, a impovisação experimental se define por uma fabricação de zonas de interminação.

A que responde essa necessidade de criação?

A improvisação como experimento instaura seu plano próprio de criação estética por ser um elemento configurador de uma nova atitude dos indivíduos frente ao caos da vida cotidiana.

Tomo como guia, nesse aspecto, Kandinsky, no livro Ponto e linha sobre plano , um manual, para mim, de pesquisa cênico-corpórea. Tomo, a partir de suas colocações, que a incerteza pode deixar de ser uma catástrofe somente, uma injustiça proveniente do acaso, para ser um modus vivendi de indivíduos e grupos que adotam, portanto, não a obra, mas a atitude estética numa relação em que se esmoronam as fronteiras entre arte e vida.

A partir das formulações da nova física, da teoria do caos, do incremento da complexidade, da influência de ataques silenciosos como o zen-budismo na sua ênfase na indeterminação, na incoerência e ilogicidade (os koans, a atitude não-livresca e não dogmática), tendo na surpresa o elemento de compaixão e amorosidade em relação ao outro e ao mundo (improvisação como ato de surpreender a si e o outro para doação da dinâmica viva da vida).

Não é sem isso que John Cage, que apesquisa cênico-experimental a que venho me dedicando elege como intercessor, toma o zen-budismo como inspiração máxima. A importância de Cage é ímpar, não só pelas formulações prático-poéticas a que chegou, mas também pelas sua investida na atitude de collage, na pesquisa também com os environments, na sua pesquisa com Merce Cuningham, um dos expoentes da dança pós-moderna, na sua influência determinante no campo da dança improvisacional e nos métodos compositivos. A improvisação, no contexto dessa investigação, é tomada como atitude que incorpora o acaso e o acidente não como provocações externas, mas como automotivadas ocorrências, a que alguns artistas tomaram como atitude a se expandir como aprendizado para a vida, no sentido de estar preparado para um mundo de incerteza, que passa a ser visto, portanto, sob uma nova ótica.

Kandinski – que havia criado vários trabalhos com o título Improvisação – coloca-nos diante do acaso, de duas atitudes diante que ele chama de “choque externo” e de “choque interno”, respectivamente:

“os choques externos (doença, infelicidade, tristeza, guerra, revolução) arrancam-nos à força por um tempo mais ou menos longo do círculo dos hábitos tradicionais, mas eles são sentidos, em geral, como uma ‘injustiça’ mais ou menos grave. Então o desejo predominante de reencontrar o mais depressa possível o estado perdido dos hábitos tradicionais prevalece sobre qualquer outro sentimento”.


Para Kandinsky, “os abalos provenientes do interior” são criações huamanas e, por isso, encontram um campo em que podem ser vividos de outro modo, que não o de uma injustiça. A atitude – e a palavra é esta – se propõe a ser frágil, a ir-à-rua, em vez de observar pela janela:

“O olho aberto e o ouvido atento transformam as mais ínfimas sensações em acontecimentos importantes. De todas as partes afluem vozes e o mundo canta.”

A última frase poderia ser atribuída a John Cage em sua aproximação arte-vida. Um modo que pode ajudar a entender o papel da arte frente aos abalos da vida. Uma perspectiva afirmativa – no qual a vitalidade e a potencialização da vida tornam-se fatores determinantes. Mesmo diante das catástrofes.

KANDINSKY, Wassil. Ponto e Linha Sobre Plano: contribuições à análise dos elementos da pintura. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1977.

19.1.07

Notas sobre vazio, criação cênica, deflagração de poesias ordinárias e iluminações avulsas

Habitando a questão:

O Estúdio Dudude Herrman e a Cia Benvinda de Dança (BH) realizaram o Ciclo de Confluências – idéias de fresta, com vivências, conferências e seminários envolvendo dança, improvisação e questões de estética contemporânea[i].

Uma das mesas coloca no título um desafio: Discutir o nada com fluência. Fui convidado, juntamente com o performer e artista plástico Marco Paulo Rolla (BH), o fotógrafo Marcelo Drumond (BH) e a coreógrafa e bailarina Márcia Milhazes (RJ) a enfrentar o tema do Nada.
O que dizer sobre o Nada? Meu enfoque partiu das relações com a composição cênica e o apagamento das fronteiras entre arte e vida.

A experiência oriental:

É preciso dizer que tomo o oriente como um traço de expressão e não como uma localização.
No entanto, no oriente não se coloca a questão do Nada, experimenta-se antes o vazio. São planos diversos.

Há aqui uma experiência que não pensa binariamente no modelo em que as coisas e o vazio não possam coexistir, sendo concebidos apenas alternadamente: ou isso, ou aquilo. No Zen Budismo, por exemplo, todas as coisas são concebidas como vazias. Inclusive, a nossa concepção de vazio.
O pensamento chinês antigo, que também influenciou o Zen, tem um sentido pragmático em relação ao vazio. Para o filósofo e especialista na China antiga, François Jullien[ii], a experiência do vazio é pura eficácia. Há uma transformação contínua e processual do cheio em vazio e vice-versa.

Um traço de expressão que perpassa também o Mundo Flutuante, período Edo, no Japão (1603-1868), que envolvia o cultivo das artes como forma de retirar-se do mundo[iii] .Um refinamento da beleza da incompletude. Compor um poema haiku ou cortar legumes: um corte perfeito e com desenho preciso.E o ma, na cultua japonesa, como espaço intervalar, constitui outro possível aprendizado.

No Aikido, mostrou-me corporalmente o Sensei Ichitami Shikanai[iv] há o maai: união (ai) com a energia do adversário que se dá através do intervalo tempo-espaço (ma). O ma está presente também no Butô[v] e expressa toda a experiência intervalar – pode ser o intervalo entre um som e uma imagem.

John Cage – cotidiano e arte:

O músico e compositor John Cage[vi] é uma fonte de pesquisas em composição experimental – aliás, esse é o título de uma das suas conferências.Cage traz para a música – e não só para ela, pois inundou de vazios a cena contemporânea (de Merce Cunningham ao Judson Dance Theater, para dar poucos exemplos) – a potência do ruído. Música como campo de emergência de sons. Ou melhor, de acontecimentos.

Cage nos mostra que não existe nem um espaço vazio e nem um tempo vazio, pois sempre há algo para se ver e se ouvir. Aliás, para ele, música é uma experiência teatral: uma ocorrência entre o que se vê e o que se ouve. Ele curtia muito nem tanto em ouvir orquestras, mas perceber o menor movimento dos músicos e, para ele, essa experiência é uma emergência no campo da percepção e, por isso, não poderia ser desconsiderada na tentativa de reproduzir algo.

O performer é co-criador da composição.O que ele traz para a criação: há sempre uma tensão entre o que se observa e o que não se observa. E, a partir disso, de um meio e não de um começo, pois sempre se está num campo perceptivo, abrir-se para as desarmonias, que são as harmonias a que não estamos habituados.4. Aberturas para o cotidiano:Não precisamos esperar a arte para que haja arte.

Isso não quer dizer que você não entra mais num cinema ou lê um texto poético ou, ainda, não ouve mais música. Pelo contrário: o tempo todo é cinema, poesia e música.
Um programa desse tipo, em bases cageanas, sugere: veja e ouça o que tem para ser ouvido e visto agora.
Experimente!

Uma idéia muito difícil de ser aceita, entendo. Ela tem por base a não oposição entre arte e vida, como postula John Cage, o que joga por chão alguns séculos de construções teóricas e de formação de hábitos para arte.Esse exercício compositivo implica, primeiro, no esvaziamento de tudo o que é prévio, de tudo o que é intencional. Você encontra-se no nível zero. Mas nesse nível, lembra Cage, não ocorre um simples nada – o vazio é pleno de desejo. É um meio no qual você já está inserido.

Exemplo: num bar, com cadeiras na calçada, o músico e cantor cria um ambiente com bossa nova. Uma imagem cheia: as pessoas bebem uma cervejinha, namoram, cantam juntos etc. É preciso algo mais – que, na verdade, será algo de menos. Ele vai ser dado, a mim, por um garoto que passa correndo pela cena, cortando o espaço com velocidade. Há uma disjunção entre imagens, uma sensação de vazio que perpassa num espaço intervalar (ma) entre as duas imagens/sensação. Há um breve e rapidíssimo atrito entre imagens que não se explicam.
São exercícios de fruição estética que podem, entretanto, serem utilizados para a criação cênica e processual.

A fresta:

Compor é sempre pensado como um ato de preenchimento. Modifico isso: compor é um ato de percepção.

Exercitei, no evento, a composição como um ato de percepção. Para tanto, tomei a idéia de fresta e procurei explorar sua conexão com a experiência do vazio.

Convidei Paulo Azevedo, da Cia Espanca, de Belo Horizonte, que assistia ao debate, para um experimento de fresta. Em meio às pessoas esparramadas pelo Estúdio Dudude Herrmann, ele deveria encontrar um corte de percepção. Solicitei aos presentes que ficassem, por um momento, em quietude, simplesmente para que pudéssemos acolher o que poderia acontecer. Paulo andou e, chegando a um ponto da sala, parou de costas. Por um momento nos iluminamos com um corpo que se oferece para ser visto por uma fresta: por suas costas.

Diria que o ator quase deixa de fazer para que algo se deixe fazer. Realiza cortes perceptivos - corredores e fluxos que guiam a percepção do espectador.São linhas sóbrias de composição. E elas podem ser exercitadas o tempo todo: não precisa esperar por um grande momento, mas também não o recusa.



[i] Belo Horizonte, 26/11/06.
[ii] JULLIEN, François. Tratado da eficácia. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998.
[iii] HASHIMOTO, Madalena. Pintura e escritura do mundo flutuante São Paulo: Hedra, 2002.
[iv] Mestre de Aikido do Nakatani Dojo, em Belo Horizonte.
[v] GREINER, Christine. Butô: pensamento em evolução. São Paulo: Escrituras, 1998.
[vi] Sobre John Cage:TERRA, Vera. Acaso e Aleatório na Música, um estudo da indeterminação nas poéticas de Cage e Boulez. São Paulo: Educ, 2000.CAGE, John. Silence: lectures and writings. Middletown: Wesleyan University Press, 1974.

17.1.07

14.1.07

Do relativismo

Ricardo Alves Júnior, parceiro de pensamento & cena, escreveu sobre o relativismo a que me referi:

O que tento provocar é sair dessa pequena crítica onde critérios de verdades são aplicados a discursos, a formas, a paixões.

Arte não seria paixão e desejo?

Sei do risco que estou correndo em apostando nesse relativismo. Mas a historia do pensamento crítico já nos mostrou que o que temos são discursos. Temos múltiplos discursos frente a um mesmo ponto (chamem como queira : objeto, imagem, coisa...)

Estou pensando assim.
Para que ficar buscando uma verdade intrínseca?
Acredito que é mais potente ver como os discursos se organizam. Como cada mundo delirante está contido por detrás de cada discurso.

(O melhor exemplo é seu blog. Esse convite para delirar que você esta propondo a todos.)

O que importa é expor seu discurso, sua parcela de verdade, sua moral.
Importa é construir uma ética pessoal, um corpo sem órgãos.

Encontrar sua força, sua potencia, suas linhas de fuga.
Isso me ensinou o cinema: enquadrar o mundo é enquadrar uma única porção da realidade. Existem outras infinitas porções. Pois bem faça a sua... e me deixe livre..

Agora, sabemos que discurso é poder...
Assim sobrevive a academia que não amamos. Essas são suas regras. Apontar "problemas conceituais" sem nenhuma paixão e desejo; longe de ser arte. De arte eles não entendem.
Esse academismo nos leva a construir um mundo de verdade onde não existe a coexistência e nem a multiplicidade.
Arte e como paixão e desejo: coexiste, habita diferentes mundos, está regida por pulsões.

É dionisíaco, mas também apolíneo.

O relativismo em que digo é minha prática diária para sair de esse pseudolugar de verdade objetiva que imperou e ainda impera no discurso dominante, principalmente em relação a arte. Esse relativismo é o lugar que encontro para chegar a coexistências e a multiplicidades que são os princípios nos quais acredito... Hoje, essas são minhas verdades.

Ricardo Alves Júnior

13.1.07

Arte como atitude

Não vou discutir o que é arte – seria gastar meu e seu tempo lustrando ossos de ofícios que procuram antes preservar status e vaidades. Mas a arte não se separa de suas funções. Uma delas, é a que procura restituir uma ordem que a vida não possui. Outro modo de funcionar parte de um movimento contrário: desmancha fronteiras, desterritorializa posições, arranca as proteções que a arte assume diante de uma vida incerta, efêmera.

Não há um modo melhor ou pior de arte. Cada um deles produz um agenciamento maquínico: são forças desejantes.

Ricardo Júnior, parceiro de criações e deambulações de estética e filosofia, diz que importa é que cada um habite um mundo, uma paisagem. Um relativismo radical, portanto, já que não há uma crítica que julgue qual mundo é melhor para se viver. A questão pode ser: aposte no seu desejo, experimente.

A arte como obra acabada é um desejo de permanência. Já uma arte como atitude desenvolve-se por outros procedimentos: working in progress. Vide o libro que Renato Cohen nos legou:Working in progress na cena contemporânea. Não é uma recusa da arte como obra (pois a obra recusa tudo o que a torna instável), mas um modo de se criar um meio perecível, processual e sem fechamento, para o acolhimento da obra.

Outras paisagens. Outras poéticas. Outros desejos.

10.1.07

Arte e Ativismo


Não estou falando de representação política em arte. Estou falando de arte como ativismo político. A idéia de que a arte deve refletir seu tempo é triste, no mínimo.

Vi, há tempos, num dos jornais de TV, a imagem de um garoto palestino atravessando um local vigiado por soldados israelenses e, num gesto rápido com um spray, manchar de vermelho o tanque de guerra, que tinha um tom amarelado. Os soldados disparavam suas máquinas de matar para o alto, tentanto dissuadí-lo, mas ele não parava, até conseguir o mínimo de efeito. Depois do ato, ou melhor, no meio do ato, é submetido.

Isso é arte? Algumas pessoas acreditam que não. Aquele garoto fazia um protesto e não uma obra de arte, estão convencidos. Obiamente, que uma ação como a do garoto não tem créditos. Como vender? Além disso, como categorizar? Porém, esse pensamento não consegue imaginar que a arte pode ser atitude e não obra, como me alertou, num café, Flávia Pinto. Ora, o garoto poderia lançar uma pedra, uma coquetel molotov, sei lá, mas correu riscos para tingir de vermelho.

Quem quiser ver mais imagens como o grafite acima, pode procurar no site do grafiteiro Bansky ( www.banksy.co.uk ).

Há também no site do Rizoma um texto de Ricardo Rosas, intitulado (Ins)urgências, de onde tirei a imagem, que atravessa o tema: http://www.rizoma.net/interna.php?id=210&secao=artefato . No mesmo site, André Mesquita aborda o hibridismo entre arte e política num texto intitulado Arte-ativismo: interferência, coletivismo e transversalidade - http://www.rizoma.net/interna.php?id=300&secao=artefato .

Não percam também o debate com Geert Lovink, um dos co-fundadores da lista de discussão Nettime, sobre as relações entre arte, ativismo e mídia tática: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2668,1.shl . Vale a pena também conferir o site do Grupo Escombros (La Plata): http://www.grupoescombros.com.ar/00-galeriafotos.htm , que desenvolve uma militância política e estética, sempre em obras (escombros) nas ruas, através de performances, instalações, manifestos poéticos etc. E o Living Theatre, que marcou os anos 60, continua no combate: http://www.livingtheatre.org/ .

De Michele Ferreira, atriz:

Querido Garrocho, gosto da prosposta, instigante, nos faz realmente pensar na cena contemporânea e na sua inquietante busca de uma nova abordagem e de uma nova relação com o público e, qual o papel e o "discurso da cena"que nós atores somos levados (e obrigados) a provocar...
Provocação.... Talvez seja essa palavra que traduza o seu blog.
Idéia Aprovada! (rs)
Um abraço
Michelle

8.1.07

De artistas cortesãos e artistas supliciados

Uma das forças do teatro moderno: criar uma solidão no meio de uma multidão. O diretor russo, Stanislavski, foi um dos que buscou no ator essa conexão consigo mesmo. Entretanto, uma linha de aderência social capturou essa força e a domesticou como quarta parede: a ilusão cênica.

Richard Wagner já havia afundado a platéia na escuridão, rompendo com os acenos da sociabilidade de salão, reascendendo no palco o mito. Mas o movimento de isolamento a que se submetem atores e espectadoers, necessário à fabricação do imaginário, torna-se, po sua vez, um modo de consumo: a contemplação. Entretanto, em La Luna de Bernardo Bertolucci, dois adolescentes fazem sexo atrás das poltronas da platéia enquanto no palco executa-se uma ópera de Verdi: as pulsões dos corpos reivindicam seus direitos e abrem outros espaços imaginários.

Grotowski e muitos outros trouxeram os corpos para o contato mais próximo, já que as demarcações entre criadores e público tornaram-se uma nova convenção social. Novas armas para romper com os hábitos sociais. Diferente disso, a cena invade a platéia e a platéia invade a cena. Novos relacionamentos entre criadores e público.

E o ator, como se localiza nisso? Grotowski rompeu com o ator cortesão: o ator santo se despe, não para uma audiência, mas diante de uma audiência. Diz, pensando em Artaud, que o ator é um supliciado na fogueira e que, de lá, emite estranhos sinais.

Um vocalista e guitarrista de uma banda de rock me surpreendeu e me fez repensar esse lugar do ator no palco. O acontecido se deu no Teatro Marília, em Belo Horizone, no projeto Quarta Sônica – rock independente - (com curadoria do poeta e músico Gil Cevi), com a banda Wry (os caras são brasileiros mas vivem em Londres). Mas, então, o que se espera de um vocalista/guitarrista de uma banda de rock? Que ele toque para ou diantede uma platéia. Armas da sedução, do artista cortesão ou de revelação, do artista supliciado? Mario Bross, o vocalista e guitarrista, atravessa pelo meio, ao meu ver, tais oposições: ele aproxima-se ao máximo, parace que olha para alguém e se oferece tocando fundo na alma. Não faz nada de grotesco ou de exagero, não empunha gestos que excitam ou incendeiam a platéia. Não realiza truques: ele se oferece, só isso. Apenas vai lá, frágil e diabólico, e toca pertinho da boca de cena. E logo recua, dá as costas, vai para o fundo.

Rogério de Freitas, citando Blanchot, diz:“é a distância que permite um encontro”. Fala ainda da diferença entre turistas e estrangeiros... Penso que Rogério fala do ato de ver, de passar... O performer (músico, cantor, bailarino, ator) se relaciona com a espectador como se fosse turista ou estrangeiro? Isso conecta com o que diretor e fundador do Teatro Antropológico, Eugenio Barba, diz do performer: este estrangeiro que dança diante de mim.

Richard Foreman, o genial encenador, criador de um teatro não-narrativo, pós-dramático, diz em Unbalancing Acts (Theatre Communication Group: New York, 1992) que o ator de suas performances não deve querer ser amado pela platéia. Deve, em tudo o que faz, ofertar em segredo para uma única pessoa presente no espaço, como se somente aquela pessoa pudesse perceber:

“I want to see a performer who makes me feel I see what is happening inside his soul, but at the same time gives me the feeling that I may be the only one in the audience perceptive enough to pick up on it.”[1]

Tudo isso me traz a imagem de Jéssica Azevedo, abrindo um grito mudo no meio da rua, fragilizando-se na cena de Fudidos, trabalho que realizei com Ricardo Júnior na Rua Guaicurus (região da baixa prostituição de Belo Horizonte), com os alunos e alunas da Escola de Artes Cênica/Belas Artes/UFMG, em 2004. Falo de Jéssica porque trabalhamos já alguns anos juntos, mas cada um dos artistas, ali, se fazia possuir pelos seus desenhos corporais como passagem para o campo das intensidades. Estou falando de uma campo sensorial, que pode atingir os sentidos e não de códigos de comunicação teatral.

Richard Foreman lembra que o rigor (diria, a crueldade) do exercício cênico que abdica de todo a sedução é, estranhamente, erótico. São traços de um teatro que não se vincula ao drama e que não passa pela comunicação, mas pelos estados perceptivos que podem se abrir e pela capacidade de sofrer e causar afecções.

[1] Tradução: “Eu quero ver um performer que me faz sentir o que está acontecendo dentro de seu espírito, mas ao mesmo tempo me dá o sentimento de que somente uma pessoa na audiência percebe suficientemente para captar isso.”

7.1.07

Contrário disso: a capacidade de um corpo ser afectado

No campo da criação corpórea aparece sempre a questão do corpo como um fenômeno de comunicação. Entranto, adentrei por um desvio que apresenta o corpo em suas forças capazes de afecção, a partir do pensamento de Gilles Deleuze, principalmente. Nessa busca, deparei-me com um texto de Peter Pál Pelbart, do qual publico um trecho que é, antes de tudo, muito inspirador:


"... seria preciso retomar o corpo naquilo que lhe é mais próprio, sua dor no encontro com a exterioridade, sua condição de corpo afetado pelas forças do mundo e capaz de ser afetado por elas: sua afectibilidade. Como o observa Barbara Stiegler, para Nietzsche todo sujeito vivo é primeiramente um sujeito afetado, um corpo que sofre de suas afecções, de seus encontros, da alteridade que o atinge, da multidão de estímulos e excitações que lhe cabe selecionar, evitar, escolher, acolher7.

Nessa linha, também Deleuze insiste: um corpo não cessa de ser submetido aos encontros, com a luz, o oxigênio, os alimentos, os sons e as palavras cortantes -um corpo é primeiramente encontro com outros corpos, poder de ser afetado. Mas não por tudo e nem de qualquer maneira, como quem deglute e vomita tudo, com seu estômago fenomenal, na pura indiferença daquele a quem nada abala...
Como então preservar a capacidade de ser afetado, senão através de uma permeabilidade, uma passividade, até mesmo uma fraqueza? Mas como ter a força de estar à altura de sua fraqueza, ao invés de permanecer na fraqueza de cultivar apenas a força, pergunta Nietzsche e, no seu rastro, Stiegler, Lapoujade? Gombrowicz referia-se a um inacabamento próprio à vida, ali onde ela se encontra em estado mais embrionário, onde a forma ainda não “pegou” inteiramente8, e a atração irresistível que exerce esse estado de Imaturidade, onde está preservada a liberdade de “seres ainda por nascer”... Porém, será possível dar espaço a tais "seres ainda por nascer" num corpo excessivamente musculoso, em meio a uma atlética auto-suficiência, demasiadamente excitada, plugada, obscena, perfectível? Talvez por isso tantos personagens literários, de Bartleby ao artista da fome, precisem de sua imobilidade, esvaziamento, palidez, no limite do corpo morto. Para dar passagem a outras forças que um corpo excessivamente blindado não permitiria. Mas será preciso produzir um corpo morto para que outras forças atravessem o corpo?
José Gil observou o processo através do qual, na dança contemporânea, o corpo se assume como um feixe de forças e desinveste os seus órgãos, desembaraçando-se dos “modelos sensório-motores interiorizados”, como o diz Cunningham. Um corpo “que pode ser desertado, esvaziado, roubado da sua alma”, para então poder “ser atravessado pelos fluxos mais exuberantes da vida”. É aí, diz Gil, que esse corpo, que já é um corpo-sem-órgãos, constitui ao seu redor um domínio intensivo, uma nuvem virtual, uma espécie de atmosfera afetiva, com sua densidade, textura, viscosidade próprias, como se o corpo exalasse e liberasse forças inconscientes que circulam à flor da pele, projetando em torno de si uma espécie de “sombra branca”9. Não posso me furtar à tentação, nem que seja de apenas mencionar, a experiência da Cia. Teatral Ueinzz, que coordeno em São Paulo, na qual reencontramos entre alguns dos atores ditos psicóticos, posturas “extraviadas”, inumanas, disformes, rodeados de sua “sombra branca”, ou imersos numa “zona de opacidade ofensiva”10.
O corpo aparece aí como sinônimo de uma certa impotência, mas é dessa impotência que ele extrai uma potência superior, nem que seja às custas do corpo empírico.
Pois é às custas do corpo empírico que um corpo virtual pode vir à tona. Desde o jejuador até o homem-inseto, os personagens de Kafka reivindicam um corpo “afetivo, intensivo, anarquista, que só comporta pólos, zonas, limiares e gradientes”. Como dizem Deleuze-Guattari, num tal corpo se desfazem e se embaralham as hierarquias, “preservando-se apenas as intensidades que compõem zonas incertas e as percorrem a toda velocidade, onde enfrentam poderes, sobre esse corpo anarquista devolvido a si mesmo”11, ainda que ele seja o de um coleóptero. “Criar para si um corpo sem órgãos, encontrar seu corpo sem órgãos é a maneira de escapar ao juízo” do pai, do patrão, de Deus, é uma maneira de fugir a todo um sistema do juízo, da punição, da culpa, da dívida.
Ao invés da dívida infinita em relação à instância transcendente, o embate dos corpos, num sistema da crueldade imanente. Há aí, insistem os autores, nesse corpo desfeito e intensivo, tal como aparece em Kafka, uma vitalidade não-orgânica, inumana, e um combate: “Todos os gestos são defesas ou mesmo ataques, esquivas, paradas, antecipações de um golpe que nem sempre se vê chegar, ou de um inimigo que nem sempre se consegue identificar: donde a importância das posturas do corpo”12.

Mas o objetivo do combate, diferentemente da guerra, não consiste em destruir o Outro, mas em escapar-lhe ou apossar-se de sua força. Em suma, o combate como uma “poderosa vitalidade não-orgânica, que completa a força com a força, e enriquece aquilo de que se apossa”.
Mas o que é essa vitalidade não-orgânica? Em “Imanência: Uma Vida”, último texto escrito por Deleuze, comparece um exemplo -o de Dickens. O canalha Riderhood está prestes a morrer num quase afogamento, e libera nesse ponto uma “centelha de vida dentro dele” que parece poder ser separada do canalha que ele é, centelha com a qual todos à sua volta se compadecem, por mais que o odeiem -eis aí uma vida, puro acontecimento, em suspensão, impessoal, singular, neutro, para além do bem e do mal, uma “espécie de beatitude”, diz Deleuze"13.

Peter Pál Pelbart -

Referências:
(texto completo em http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2792,1.shl)


7 - Barbara Stiegler, "Nietzsche et la Biologie", Paris, PUF, 2001, p. 38.
8 - Witold Gombrowicz, "Contre les Poètes", Paris, Ed. Complexe, 1988, p. 129.
9 - José Gil, “Movimento Total”, Lisboa, Relógio d´Água, 2001, p. 153.
10 - http://ueinzz.sites.uol.com.br/home.htm
11 - G. Deleuze, “Crítica e Clínica”, São Paulo, Ed. 34, p. 149.
12 - G. Deleuze, “Crítica e Clínica”, op. cit., p. 149-150.
13 - G. Deleuze, "L´Immanence, Une Vie", in « Deux Régimes de Fous », Paris, Minuit, 2003.

6.1.07

Não se trata de comunicação: a arte do teatro

O teatro vem sendo acostumado a acreditar que muito de sua arte se resume a uma comunicação entre palco e público. Defendo aqui que não se trata de comunicação. Mas isso não quer dizer que a encenação se fecha num espaço hermético, que ignora as pessoas etc. Penso antes que há um choque primordial (no sentido parabólico) entre dois seres. Brindo vocês com uma tradução que faço dessa citação do encenador polonês Tadeusz Kantor, que fala desse choque/encontro, que compõe com forças que não podem ser reduzidas a qualquer codificação (mantenho a sua formatação original):

"É necessário re-colocar o significado essencial do relacionamento: ESPECTADOR e ATOR. É NECESSÁRIO REDESCOBRIR A FORÇA PRIMORDIAL DO CHOQUE TOMANDO POSSE DO MOMENTO QUANDO O HOMEM ANTAGÔNICO (O ESPECTADOR) POSICIONOU-SE PELA PRIMEIRA VEZ DIANTE DE UM HOMEM (O ATOR) DEPRECIAVELMENTE SIMILAR A NÓS, AO MESMO TEMPO INFINITAMENTE ESTRANGEIRO, ALÉM DE UMA INTRANSPONÍVEL BARREIRA." (1)

(1) KANTOR, Tadeusz. A journey through other spaces: essays and manifestos, 1944-1960. Edited and Translated by Michal Kobialka. With a Critical Study of Tadeusz Kantor´s Theatre by Michal Kobialka. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1993